OPINIÃO

Como fazer política com estatística – e uma pandemia

Por Paulo Polzonoff Jr.

Números, números, números. O que mais se viu nos últimos meses foram gráficos, números pretéritos, estatísticas atuais, projeções. Um tal de “modelo matemático”, incompreensível para a maioria das pessoas, entrou no debate como uma espécie de oráculo. Os números são considerados tão infalíveis e têm tanta credibilidade que por um instante p3n5e1 3m e5cr3v3r 0 t3xt0 4ss1m.

Intencionalmente ou não, é claro que os números foram usados politicamente para confundir as pessoas em meio à pandemia. Afinal, nada mais eficiente para gerar pânico do que porcentagens apocalípticas. Funciona para tudo, da taxa de juros à inflação, do valor calórico na latinha de refrigerante às queimadas na Amazônia, da taxa de desemprego à letalidade do coronavírus.

É truque velho. Tanto que há 70 anos Darrel Huff já tinha escrito Como Mentir com Estatística, livro que explica justamente como é fácil usar 72,3% de dados precisos para maquiar 12,46% da realidade e, assim, embasar a opinião de 99,98% dos picaretas intelectuais de plantão. O livro teve, no Brasil, uma edição recente pela Intrínseca. O que mostra que, em tempos de fake news, analfabetismo matemático, tirania de especialistas e narcisismo extremo, a manipulação dos números ainda desperta interesse e é mais eficiente do que nunca.

Um milhão de mortos

A pandemia de Covid-19 criou muitos monstros. De políticos tiranetes com ideias estapafúrdias para conter o vírus a epidemiologistas com aquele sorrisão que entrega a sensação de autoimportância. E os monstros dessa pandemia usaram e abusaram dos números a fim de imporem sua narrativa. Afinal, quem é louco de discordar de alguém que sabe fazer equações com letrinhas?!

O problema é que, quando manipulados para dar robustez estatística a uma narrativa fortemente contaminada pela política, os números, sempre tão frios, quase sempre aparecem cobertos por uma mantinha quente de incoerência. Se é assim com o ridículo e inaceitável 2 + 2 = 5 que somos obrigar a engolir quando saem da boca de renomados economistas da UNICAMP, imagine como não é com conclusões nascidas de equações com uma dúzia de letras gregas.

O “biólogo, divulgador científico e explicador do mundo por opção” Átila Iamarino, por exemplo, ganhou fama nos últimos meses ao prever, se nada fosse feito, um milhão de mortos por Covid-19 no Brasil até agosto. Para fazer essa afirmação, ele se baseou em complexos modelos matemáticos rodados em supercomputadores. Uma coisa que está além da compreensão de nós, meros mortais. Por causa de previsões como a de Iamarino, muita gente se desesperou. Autoridades tomaram medidas drásticas na tentativa de conter o coronavírus. E vidas foram afetadas de formas que nenhum supercomputador é capaz de prever e nenhum biólogo é capaz de assimilar em sua totalidade.

E quem discordasse da projeção com base apenas na lógica elementar, no dois-mais-dois de botequim, na matemática-moleque, na análise estatística de várzea, era imediatamente tachado de negacionista, obscurantista, anticiência e, por fim, bolsonarista. Pois estamos chegando a agosto e a previsão de Iamarino não vai se concretizar. Ele dá de ombros, claro, e já tem a justificativa na ponta da língua: alguma coisa foi feita.

Hidroxicloroquina no Aquífero Guarani

Aí a coisa muda de figura. Sorrateiramente, Iamarino abandona o terreno dito imparcial da matemática e invade o território da política, onde as palavras, bem menos precisas do que os números, podem ser torcidas e distorcidas à vontade. Tamanha maleabilidade é a beleza e a maldição das palavras, sua maior virtude e também maior fraqueza.

Quando se entra nesse campo minado, é possível usar os números para justificar qualquer coisa. O desvio-padrão do “se nada for feito” pode significar, por exemplo, que é preciso que se faça qualquer coisa. Pode-se correr para as montanhas, pode-se adicionar hidroxicloroquina no Aquífero Guarani, pode-se decretar toque de recolher e se pode até fazer o que o presidente Jair Bolsonaro fez – demitir ministros em meio à pandemia, falar que é gripezinha, sair abraçando apoiador, enfim, todas essas coisas que, para muitos, transformam o presidente no maior responsável pelas mortes por Covid-19 no Brasil.

Ainda brincando com os números e com as palavras, é possível dizer, veja só!, que Iamarino estava certíssimo em sua previsão inicial. Mas, como chegamos a agosto com menos de 100 mil mortes, isso significa que pelo menos 900 mil pessoas escaparam à Ceifadora graças ao empenho da autoridade de sua preferência (incluindo o presidente), que fez alguma coisa, qualquer coisa, até rodízio de CPF, e disse que tudo era para conter o coronavírus, evitar aglomerações, etc.

Usando apenas esses dados brutos, absolutos e até então irrefutáveis, é possível chegar à conclusão de que o Brasil é um dos países mais bem-sucedidos do mundo no combate ao coronavírus, porque conseguiu evitar 90% das mortes previstas pela ciência.

Percepção da realidade

O problema é que esses números todos não condizem com a percepção da realidade. Não condiziam no caso das fatalidades previstas por Átila Iamarino e alardeadas como um sinal do fim dos tempos por um sem-número de papagaios da “ciência, ciência, ciência” e não condizem com a ideia de que os governos federal, estadual e municipal foram extremamente eficientes no combate à pandemia.

Isso porque a estatística, assim como o uso político tanto dos números quanto das palavras, é um dado da realidade, e não a realidade em si. Modelos matemáticos como os usados por Átila Iamarino ou seu colega britânico Neil Ferguson requerem variáveis subjetivas. Até por isso o melhor modelo matemático não é aquele que mais acerta, e sim o que menos erra.

O que, parando para pensar, se aplica também aos modelos políticos.

Não estou querendo dizer aqui que os números sempre mentem nem sugerir que a ciência não serve para absolutamente nada. Longe disso. A Covid-19 definitivamente não é a gripezinha que muitos (inclusive eu) acreditávamos ser no começo. Até aqui, quase cem mil brasileiros já perderam a vida para essa doença e cada morte é um sofrimento inalcançável para quem não o vivencia.

A questão é que os números não são infalíveis quando manipulados (no sentido de manuseados, não de “desviados para determinado fim”) por seres humanos inegavelmente sujeitos a falhas – por mais que eles sejam “esterilizados” antes num supercomputador. O malthusianismo, os planos quinquenais da extinta URSS e até o Grande Salto Para Frente de Mao Tsé-tung estão aí para provar isso. Todos nasceram de complexas tabulações, um quê de boa intenção e muita arrogância de quem se considera “explicador do mundo”. E resultaram em morte, milhares e até milhões  delas.

Por enquanto, é impossível avaliar se as projeções exageradas de Átila Iamarino e seus colegas pelo mundo causarão uma tragédia maior do que a da Covid-19. Tomara que não. Só espero que, uma vez computados todos os afetados pelo medo, possamos, desde que despidos da arrogância científica, concluir de algum modo que pecamos pelo excesso de cuidado – e que foi melhor assim.

Fonte Gazeta do Povo

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