Túneis subterrâneos no Ver-o-Peso e embarcação do século 19: obras da COP30 revelam tesouros esquecidos de Belém
Galerias escondidas sob o centro histórico, embarcação a vapor, moedas raras e cerâmicas indígenas estão entre os achados arqueológicos durante as obras de infraestrutura da COP30
As obras de preparação de Belém para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30) não estão apenas transformando a paisagem urbana da capital paraense. Elas também estão revelando uma Belém esquecida, soterrada pelo tempo, com descobertas arqueológicas que vão desde estruturas coloniais até embarcações do século 19.
Um dos achados mais impressionantes surgiu nas imediações do Mercado Ver-o-Peso: túneis subterrâneos com estruturas em tijoleira, em formato de arco, que datam dos séculos 18 e 19. Segundo o historiador Kelton Mendes, da empresa Amazônia Arqueologia, responsável pelo acompanhamento técnico das escavações, essas galerias foram construídas para absorver a maré alta, uma solução de engenharia urbana antiga que ainda surpreende pela complexidade.
“Essas estruturas estão localizadas sob ruas da parte mais antiga da cidade, no centro histórico, e algumas delas têm proporções que permitiriam, inclusive, a passagem de pessoas”, afirma Mendes. As maiores chegam a 1,90 metro de altura por 1 metro de largura, o que levanta hipóteses sobre seu possível uso, inclusive durante conflitos históricos como a Cabanagem (1835-1840), quando Belém viveu um período de intensos confrontos armados.
Além dos túneis, foi encontrado também um muro de arrimo no mesmo local. Feito de pedra e cal, ele remonta ao século 18 e foi erguido para conter o avanço das marés na área frontal da cidade. Como essas estruturas não podem ser removidas, elas são registradas por meio de fotografias, georreferenciamento e documentação técnica.
Embarcação do século 19 surge sob a Doca
Outro achado que chamou atenção foi uma embarcação do século 19, localizada durante as escavações na avenida Visconde de Souza Franco, a popular Doca. A estrutura, feita de ferro e possivelmente movida a vapor, mede cerca de 20 metros de comprimento e 8 metros de largura. Ela foi descoberta sob a calçada e o asfalto, próximo ao antigo porto da cidade.

“Ela está fora do padrão das embarcações amazônicas da época. É feita de ferro, provavelmente para transporte de carga em águas profundas, não em igarapés. Trata-se de uma embarcação abandonada, e não naufragada. A cidade foi erguida sobre ela, com aterros”, explica o arqueólogo e historiador Augusto Miranda, do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Atualmente, a embarcação está sendo restaurada em uma tenda montada próxima ao local da descoberta. A previsão é que ela seja exposta ao ar livre no Parque Porto Futuro 1, como forma de conectar a população à sua história fluvial. A arquiteta e restauradora Tainá Arruda detalha que a limpeza está sendo feita com jato seco e que será aplicado um consolidante para proteção contra intempéries.
Um dos objetos mais curiosos achados no barco foi uma moeda de 20 réis de 1781, com inscrições dos regentes portugueses Maria I e Dom Pedro III. Ela foi encontrada presa à proa da embarcação, adicionando um valor simbólico e histórico ainda maior ao achado.
Cerâmicas, louças e histórias apagadas
As escavações também revelaram um rico acervo de cerâmicas indígenas com mais de 500 anos, usadas em atividades cotidianas e rituais de enterramento. Fragmentos de cerâmica popular produzida por negros livres no final do Império, como potes usados para venda em mercados, também foram identificados, além de louças e garrafas de origem europeia — como uma garrafa com o nome da destilaria holandesa Wynand Fockink, fundada no século 17.

“Esses achados recontam histórias que foram invisibilizadas. Normalmente, a gente valoriza o que foi deixado pelo colonizador, mas esquece das populações indígenas e negras que também construíram essa cidade”, destaca Miranda.
Uma mão de pilão de madeira, também do século 19, está entre os itens mais preservados, reforçando o cotidiano das populações pobres da cidade em tempos passados.
Achados também no Porto Futuro 2 e Tamandaré
Na obra do Porto Futuro 2, um dos principais equipamentos previstos para a COP30, parte de uma embarcação semelhante à da Doca também foi encontrada. Além disso, surgiram roldanas, molinetes e peças de guindaste que pertenceram à antiga infraestrutura portuária da capital paraense.
Já nas escavações da avenida Almirante Tamandaré, onde também está sendo construído um parque linear, foram encontrados artefatos similares aos da Doca e do Ver-o-Peso. A área margeava o antigo lago do Piri, aterrado no final do século 19 para permitir a expansão urbana.
Todos os materiais coletados estão sendo catalogados, higienizados e encaminhados para acervos públicos. Parte será preservada no Museu do Estado do Pará e na Fundação Casa da Cultura de Marabá.
Um resgate da memória amazônica
Em um momento em que Belém se prepara para receber o mundo na COP30, essas descobertas mostram que a cidade tem muito mais a oferecer do que paisagens e debates ambientais. “Belém é uma cidade que cresceu sobre o rio, sobre igarapés, e cheia de camadas históricas que agora estão sendo reveladas. A população precisa ver isso, entender isso”, afirma Miranda.
As obras da COP30, portanto, não apenas projetam o futuro da cidade, como desenterram seu passado. Um passado que, aos poucos, começa a ser devolvido ao olhar da população.



