BBC News: Entre Canoas, Jacarés e Chineladas

Por Eduardo Cunha
Ainda outro dia, em fevereiro, se minha memória não falha, li uma publicação nas redes sociais mencionando que já se passaram 38 anos desde o dia em que Renato Russo levou uma chinelada na cara depois de dedicar a música “Índios” ao público de Belém.
O ano era 1987, tempos em que a Legião Urbana vivia seu auge e arrastava multidões para os shows. O episódio ocorreu em Belém, no Ginásio Superior de Educação Física. Coisa de gente como eu, 50+, que viveu aqueles dias sem filtro, sem VAR para checar e, principalmente, sem celular para registrar—apenas a memória, teimosa ou generosa, dependendo do ponto de vista.
Após a publicação, logo surgiram os negacionistas de plantão e oportunistas, jurando que tudo não passava de uma “lenda urbana”. Dizem que os fatos não ocorreram bem assim e, como prova, resgataram um vídeo da banda relatando sua versão da história. Nele, Renato e companhia garantem que a situação foi bem diferente e que jamais voltariam a tocar em Belém—afinal, segundo eles, foi um dos piores lugares onde se apresentaram, “povo mal-educado”.
Alguém da geração Z ou além talvez questione: “Mas por que não há imagens de celular que alguém certamente teria gravado?”. Pois é, naquele tempo só existiam as narrativas—cada um contava a sua, e o resto era memória, mitologia e polêmica.
O curioso é que, décadas depois da tal “chinelada” que o autor de Tempo Perdido levou, as narrativas continuam valendo mais do que a própria realidade—mesmo com a onipresença da internet. No fim das contas, parece que nós, amazônidas, “somos todos índios”.
Querem ver? Poucos dias depois da postagem, vi uma entrevista de Mariah Carey à TV Globo, na qual ela confessou estar apreensiva sobre o que encontraria “lá no meio do rio”. A cantora havia confirmado um show em Belém, onde se apresentará em um palco flutuante.
Não deu outra: o completo desconhecimento da diva americana sobre a região, é claro, rendeu vários memes entre os paraenses. Me desculpem, mas fico imaginando o cachê que essa moça recebeu para compensar vir cantar em um lugar que imagina ser uma aldeia indígena cercada por anacondas.
Mas sejamos francos: no fundo, tanto Renato Russo quanto Mariah Carey apenas refletem um pensamento comum. Quando se fala em Amazônia, a imagem que vem à mente é a de uma floresta exuberante, habitada por índios, repleta de animais exóticos e cortada por um rio de proporções colossais. Poucos lembram que, além dessa Amazônia vendida ao mundo, existe também a Amazônia urbana—como Belém, Manaus e Macapá—com seus habitantes e desafios próprios.
Não foi à toa que a banda paraense Mosaico de Ravena, nos anos 90, compôs Belém-Pará-Brasil—um verdadeiro grito de revolta contra a exploração, mas também contra o completo desconhecimento da região por parte de quem acredita que jacarés passeiam livremente pelas ruas das cidades.
Qual foi minha surpresa? Menos de uma semana depois da declaração da cantora, me deparo com uma matéria da BBC News Brasil trazendo uma nova versão desse pensamento—mas desta vez, mais por oportunismo do que por ignorância. Égua, pera lá! Haja pissica, mano! Explico.
Segundo a reportagem, está sendo construída uma rodovia de quatro faixas com cerca de 13 km—Avenida Liberdade—em preparação para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. A publicação alega que a via estaria “devastando” a Amazônia.
Peço desculpas ao leitor pela minha pouca paciência, e se minha pergunta parecer simplista, mas gostaria de saber: de que forma esperam que saiamos de Belém? De canoa? E mais: fico me perguntando de que Amazônia a matéria fala, a que eu habito ou a que Greta Thunberg imagina?
Para quem caiu de paraquedas e desconhece a realidade local, Belém é uma metrópole cercada por ilhas e pela Baía do Guajará, recebendo as águas dos rios Guamá e Acará. A única saída terrestre da cidade está ao sul, pela BR-316. Por isso, são necessárias vias alternativas para desafogar a sobrecarregada Avenida Almirante Barroso, como a Avenida Independência e a Avenida Centenário.
A Avenida Liberdade é um projeto antigo, idealizado por sucessivos governos, com o objetivo de conectar a Alça Viária, em Marituba, à Avenida Perimetral, próximo à UFPA, funcionando como uma alternativa de acesso à BR-316.Ora, é inegável que, mais cedo ou mais tarde, se não for essa, outra via acabará sendo construída, gerando a inevitável polêmica sobre a “devastação da floresta”—seja antes ou depois da COP-30.Cabe a nós, amazônidas, que percorremos esse trajeto diariamente entre casa e trabalho, ponderar os custos e benefícios dessa decisão.
Todavia, como bom paraense—acolhedor, mas também reativo—, convido o correspondente da BBC News Brasil para percorrer o trecho de Belém a Ananindeua com seu carro ecológico em pleno horário de pico.De uma coisa tenho certeza: ele pode até não sair mordido por um jacaré, mas, sem dúvida, levará uma bela chinelada.