OPINIÃO

Autonomia x soberania

Por Alex Fiúza de Mello

Os impasses que estão aflorando, neste momento, na esfera das universidades públicas brasileiras, particularmente no que concerne à nomeação dos novos reitores pela Presidência da República, refletem, ao fim e ao cabo, a crise do modelo.

Já faz tempo que as normas em vigor que balizam o processo de escolha dos dirigentes máximos das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), no Brasil, caducaram em seus propósitos originários, de vez que, com a redemocratização (1985), a principal motivação que conduziu ao arranjo presente – o controle autoritário dos rumos da Academia por governos não eleitos –, perdeu a sua razão de ser.

O que se observa, atualmente, nas disputas de bastidor, é uma inversão da lógica que imperava no passado. Das tradicionais interferências políticas externas, estranhas ao ambiente acadêmico, passou-se ao extremo oposto, em que eclodem movimentos corporativos no interior da própria academia em favor do direito exclusivo e absoluto da escolha de seus dirigentes, sem disso prestar contas perante a sociedade e, tampouco, aos governos democraticamente eleitos para governar o país (e suas instituições), confundindo-se, assim, “autonomia” com “soberania”.

Na grande maioria dos países desenvolvidos, o cargo de reitor de uma universidade é considerado uma função de Estado; portanto, diretamente subordinado a diretrizes delimitadas por políticas de Estado de longo prazo, conduzidas por governos eleitos, além de supervisionado, não raramente, por delegados da sociedade civil, integrantes dos conselhos deliberativos das instituições acadêmicas, na qualidade de seus representantes.

O fundamento primordial para esse desenho normatizador – por certo elitista, pela natureza do escopo – repousa, substancialmente, numa única, determinante e incontestável premissa: conhecimento é poder (knowledge is power); e, como tal, é a base e o combustível de todo processo de desenvolvimento socioeconômico de uma nação – e, no limite, de sua soberania. Portanto, por esse prisma, não podem – nem seria legítimo – as universidades e os institutos de pesquisa serem espaços autorreferentes; autodeterminados meramente a partir de seus interesses associativos internos, à medida que professores e pesquisadores são servidores públicos e estão, por dever ético e obrigação funcional, a serviço de toda a sociedade – que lhes paga os salários (com impostos) em troca da qualidade da formação profissional, da produtividade científica e da inovação tecnológica.

Nas universidades norte-americanas, como regra, os colegiados superiores que escolhem os reitores (e outros cargos associados) são constituídos, em média, por 80% de membros provenientes da comunidade externa, muitos da iniciativa privada, como os grandes doadores e os alumni (ex-alunos) notáveis (prêmios Nobel, empresários inovadores, políticos destacados, etc.). Na Europa, a exemplo da Alemanha, a designação dos dirigentes máximos dos institutos universitários e de pesquisa (que são públicos na sua grande maioria) é prerrogativa exclusiva do Presidente da República, não ocorrendo qualquer autodeterminação política da comunidade acadêmica nesse sentido. Tampouco na China, cujo controle total sobre as universidades é exercido diretamente pelo Partido Único no poder.

Nada de anormal, portanto, ou de estapafúrdio, ou de “antidemocrático” que, no Brasil, caiba ao Presidente da República, eleito democraticamente – e que representa toda a sociedade –, a escolha de um nome de sua preferência às reitorias das universidades, dentre aqueles que compõem a lista tríplice que lhe é enviada por Conselhos Universitários – à qual, inclusive por força da lei, é obrigado a acatar, numa deferência incomum à comunidade acadêmica comparativamente a outras situações mundo. Do que se depreende que cabe às instituições universitárias apresentar bons nomes à unção presidencial, e até sugerir uma hierarquia de sua preferência, mas jamais exigir o seu cumprimento ipso facto, retirando do Chefe máximo da Nação um direito que, não por acaso, também lhe conferiu a lei – e para o qual tem legitimidade democrática.

A escolha do Reitor em lista tríplice, por certo, não desnatura a autonomia administrativa das universidades; não somente em razão da participação ativa da comunidade universitária em sua elaboração, mas, sobretudo, devido ao fato de que cabe à própria Universidade estabelecer, mediante norma própria (Estatuto e Regimento Geral), a composição e as competências de seus órgãos colegiados, além das atribuições do Reitor – conforme solução expressamente reconhecida, ademais, pela Lei nº 9394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (artigo 54 e seguintes).

A propósito, convém relembrar que a Constituição prevê, no mesmo diapasão, a participação do Presidente na escolha do chefe do Ministério Público, instituição dotada de autonomia e independência funcional – tal qual as universidades – e cujo exercício de gestão, desvinculado de interferência política, é essencial à promoção da justiça e à supervisão do Estado Democrático de Direito. Assim, a despeito da previsão constitucional expressa, as garantias institucionais e a existência de mandato afastam o argumento de mitigação da autonomia do Ministério Público em decorrência da participação do Executivo.

Em suma, a participação direta da Presidência da República no intrincado procedimento de escolha do gestor máximo de uma universidade não implica, por si só, interferência indevida do Chefe do Poder Executivo na autonomia didático-pedagógica e/ou administrativo-financeira da instituição, que vem garantida (e protegida) por inúmeros mecanismos legais e normativos, absolutamente condizentes com a sua finalidade social – inclusive em nível constitucional.

O conceito de “autonomia universitária”, cuja controversa hermenêutica tem motivado toda a polêmica em apreço, vem consagrado no texto da Carta Magna de 1988, particularmente em seu artigo 207 – além de outros, complementares. Coube à Lei Maior, por vontade expressa do Congresso Constituinte, elevar pioneiramente na história da universidade brasileira a autonomia acadêmica ao nível de princípio constitucional, definindo os seus termos no referido artigo:

“Art. 207 – As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

Como se observa desde logo, o texto constitucional se preocupa em delimitar, de forma incontroversa, o conteúdo da “autonomia” das universidades, restringindo-o, unicamente – conforme a redação –, às funções “didático-científica” (relativamente às atividades-fim) e “administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (atinente às atividades-meio ou instrumentais)Não se trata aqui, pois, de autonomia política, isto é, da delegação de poderes plenos à instituição sobre si própria (autodeterminação) – o que redundaria em soberania.

Em Ciência Política, o conceito de soberania difere daquele de autonomia, à medida que apenas um ente soberano, como o Estado nacional, tem plenos poderes sobre si próprio, inclusive em termos de representação diplomática internacional, enquanto que, no caso do exercício da autonomia, os poderes nunca são plenos, senão restritos – em alguma medida.

De acordo com o filósofo Jean Bodin (1530-1596), “soberania” se refere a entidade que não conhece superior na ordem externa, nem igual na ordem interna. Seja nas páginas de seu Método para Fácil Compreensão da História (1566), ou nas d’Os Seis Livros da República (1576), o conceito de soberania é tratado pelo renascentista francês como poder absoluto e perpétuo de um Estado-Nação (de uma República) – sem equiparação a outras instâncias ou configurações societárias.

Miguel Reale, célebre jurista, professor e reitor da USP (já falecido), em sua obra Teoria do Direito e do Estado,  define soberania como “o poder que tem uma ação de organizar-se livremente e de fazer valer, dentro do seu território, a universalidade de suas decisões para a realização do bem comum.”

Nas várias acepções, portanto, o conceito de soberania se relaciona com a noção de autoridade suprema, geralmente exercida no âmbito de um país (de um Estado-nação). É o direito exclusivo ou domínio pleno de uma autoridade suprema sobre um determinado espaço social ou grupo de pessoas – em regra, constituído(as) como nação –, não se confundindo com aquele da autonomia, sempre mais restrito em seu alcance – que pode ser usado, inclusive, para indicar a concessão de poder por parte de um governo central em favor de outro, em nível regional ou local, segundo o princípio da subsidiariedade, pressupondo uma hierarquia.

Há de se completar, nessa linha de argumento, que os poderes autônomos, predominantemente, são temporários (e não “perpétuos”) e permanecem, em última análise, vinculados a uma autoridade central (governo), hierarquicamente sobreposta – como ilustram os sistemas federais, que delegam alguns poderes e funções de sua alçada a entes regionais ou locais, sob garantia da observância de determinações superiores, a exemplo das normas de âmbito constitucional.

Por não serem soberanas, cabe às universidades brasileiras – como alhures – a sujeição a inúmeras condições definidas em lei. Dentre essas, além do dever de observância dos princípios do próprio artigo 207 (indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão), impõem-se, igualmente, aqueles contidos no artigo 206, particularmente os referentes ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; à gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais; à gestão democrática do ensino público (na forma da lei); à garantia do padrão de qualidade, etc. – princípios que se sobrepõem a qualquer iniciativa ou procedimento em contrário, não podendo ser revogados por meio de resoluções internas às instituições.

Afinal, a Universidade Pública é ente da administração indireta e não existe por si só, isolada no espaço jurisdicional do País. A sua própria existência depende da vontade política do ente federativo que a cria e a mantém (em nome da sociedade), e esse dispositivo sempre se manifesta mediante lei, até por força de preceito constitucional expresso (art. 37, XIX da CF) – além de integrar um sistema nacional, a exemplo de outras entidades de caráter público, cujas diretrizes, em termos de finalidade, objetivos, etc., devem ser fixadas em lei e cumpridas na sua integralidade.

Não há, pois, o que duvidar: se cabe, por definição legal, à instituição universitária, por meio de seu conselho superior (com ou sem consulta direta à comunidade interna), a elaboração da lista tríplice dos candidatos à reitoria do órgão (Lei 9.192/95 e Dec. 1.916/96), compete ao Presidente da República, a seu turno, o poder discricionário da escolha do nome que melhor lhe convier dentre os três indicados, em conformidade com as diretrizes de seu Governo (democraticamente eleito). A designação do primeiro colocado da lista é apenas uma concessão (por princípio ou por estratégia) do Chefe de Estado, não uma obrigação. Uma deferência, não um imperativo. Bem ou mal, está nas “regras do jogo”. E todos os candidatos disso estão cientes, a priori. Não cabe aqui burla, de ambas as partes.

Não se pode desdenhar, ademais, que Universidade não é ente de finalidade política. Não existe para representar o conjunto dos cidadãos. Logo, não é de bom alvitre projetar-lhe um modelo de eleição ou escolha de dirigentes aos mesmos moldes do que ocorre para os mandatos de natureza política. Reitor não é prefeito, governador ou presidente da república. É (deve ser), tão somente, reitor: gestor de uma instituição de ensino superior e de pesquisa, que tem por incumbência realizar as suas já dificilíssimas (e específicas) funções com qualidade, eficiência e inventividade – o que não é pouco! – em benefício de toda a sociedade.

Se o atual modelo de escolha de dirigentes universitários já rendeu os seus frutos e cumpriu o seu papel histórico, num determinado contexto, talvez agora tenha chegado a hora de ser revisto, para o bem de todos e das futuras gerações. Tudo na vida – e na história – tem o seu momento de superação, determinado pelas transformações inexoráveis do devir. O mundo mudou e, com ele, a dinâmica das instituições. A continuidade de um padrão de escolha de reitores que sujeite os potenciais candidatos a processos eleitorais similares aos que ocorrem nas convencionais arenas políticas, comprometendo o direcionamento dos destinos da instituição – extremamente estratégica para o País – em função de “compromissos eleitoreiros” previamente assumidos com suspicazes “cabos eleitorais” (de diversas naturezas), não é condizente com os enormes desafios das instituições acadêmicas perante o atual contexto civilizatório – de globalização, de inovações tecnológicas intermitentes, de alta competitividade econômica baseada no conhecimento, de profundas e inexoráveis transformações no mundo do trabalho, etc.

Reitores, com a devida vênia, não deveriam ser eleitos por cartazes, propaganda, slogansbotons, discursos demagógicos, posturas ideológicas ou apoios partidários; mas por currículo acadêmico, experiência administrativa, programa e diretrizes de trabalho condizentes com a função; enfim, exclusivamente por atributos de mérito comprovado – além de compromisso público e republicano.

Essa, por certo, passa a ser uma questão de Estado – dentre as mais urgentes! –, no presente contexto: a garantia de uma maior afinidade das linhas de trabalho no ambiente acadêmico com as necessidades e prioridades do desenvolvimento econômico e social, definidas por políticas públicas de Estado. E nesse campo não pode haver espaço para corporativismos, acomodações e falsos “democratismos”. O novo modelo teria que mirar o mérito, a atualidade do conhecimento, a inovação tecnológica e a cultura do empreendedorismo, tornando a relação da universidade com a sociedade civil – pelo compromisso diretivo – mais orgânica e dinâmica.

Repousa na conciliação da autonomia acadêmica – atributo exclusivo de professores e pesquisadores – com a necessidade social – expressa pela sociedade civil, mantenedora da instituição (e não pela corporação universitária) – o cerne de todo o desafio. O novo modelo a ser gestado terá de pautar-se nessa questão, oferecendo uma melhor solução para o atual impasse. Não faltam alternativas, nem experiências internacionais de sucesso que possam servir de referência e inspiração.

Fato é que a Universidade brasileira não pode mais ficar à mercê de interesses políticos menores, corporativos ou ideológicos, descompromissados com os grandes desafios do desenvolvimento do País – e de época. O tempo é implacável – e não perdoa.

Alex Fiúza de Mello é Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018). 

Link: https://www.zoonpolitikon.com.br/2020/10/07/autonomia-x-soberania/

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