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O ‘roubo’ transatlântico que mudou a história de Belém e da Amazônia

Em 1876, o inglês Henry Wickham levou 70 mil sementes de seringueira do Pará para o Reino Unido, impulsionando plantações no Sudeste Asiático e provocando o declínio do ciclo da borracha na Amazônia.

No porto de Belém, em 1876, um episódio silencioso alteraria drasticamente os rumos econômicos e sociais da Amazônia. A bordo do transatlântico SS Amazonas, o inglês Henry Wickham carregava caixas lacradas contendo 70 mil sementes de Hevea brasiliensis — a seringueira. Às autoridades portuárias, Wickham declarou que se tratavam de “amostras botânicas delicadas” destinadas ao Jardim Botânico Real, em Kew Gardens, Londres. Mas o verdadeiro objetivo, mantido em sigilo, era estratégico: quebrar o monopólio amazônico da borracha e estabelecer grandes seringais produtivos nas colônias britânicas no Sudeste Asiático.

A viagem ocorreu sem incidentes, e das sementes enviadas, cerca de 2,6 mil germinaram em Londres. Transplantadas para regiões como Malásia, Singapura e Sri Lanka, elas prosperaram em plantações organizadas, com acesso facilitado a portos e infraestrutura. Essa nova geografia produtiva oferecia condições muito superiores às da Amazônia, onde a extração do látex dependia de longas expedições fluviais e seringais dispersos pela floresta.

O resultado foi imediato e profundo. Ao longo das décadas seguintes, o Brasil, que dominava cerca de 90% do mercado mundial da borracha, viu sua posição ruir. A borracha amazônica — pilar econômico que sustentava Belém e Manaus — perdeu competitividade frente ao produto asiático, mais barato e produzido em larga escala.

O ciclo da borracha havia impulsionado uma transformação urbana sem precedentes na região. Em Belém, surgiram boulevards arborizados, rede de esgoto, iluminação elétrica, bondes, bancos internacionais e edifícios monumentais, como o Theatro da Paz, inaugurado em 1878. A capital paraense pretendia se firmar como uma Paris tropical. Manaus, por sua vez, se transformou em centro de luxo e ostentação, a “Paris dos Trópicos”.

Contudo, essa prosperidade concentrava-se na elite seringalista, enquanto milhares de migrantes — especialmente nordestinos atraídos pela promessa de enriquecimento — ocupavam as baixadas, áreas alagadas e periféricas com pouca infraestrutura. Quando o mercado ruiu com o avanço asiático, no início do século 20, a queda foi brutal. A riqueza evaporou, a estrutura urbana se deteriorou e a desigualdade se aprofundou.

O episódio envolvendo Wickham é frequentemente descrito como um caso de biopirataria. Embora não houvesse legislação na época proibindo a exportação de sementes, historiadores apontam que o ato se insere em práticas coloniais de extração de recursos e conhecimento local sem retorno às populações afetadas. “Avaliar o caso como crime é anacrônico, mas ele simboliza as relações desiguais do colonialismo”, afirma o pesquisador Nelson Sanjad, do Museu Paraense Emílio Goeldi.

Hoje, quase 150 anos após a travessia que ajudou a desestabilizar a economia amazônica, Belém volta a ter os olhos do mundo voltados para si. Como sede da COP30, a capital se apresenta novamente como centro de debates globais — desta vez, não sobre o que a floresta pode fornecer, mas sobre como preservá-la.

Entretanto, o passado ainda ecoa no presente. Belém é, segundo o IBGE, a capital brasileira com maior proporção de moradores em favelas — cerca de 57% da população vive em baixadas. Investimentos recentes em infraestrutura urbana reacenderam expectativas, mas moradores de periferias temem que melhorias se restrinjam a áreas centrais, repetindo o padrão histórico de exclusão.

“Quando pensamos no ciclo da borracha, vemos como a riqueza pode não se converter em benefício para quem mais precisa”, afirma a historiadora Celma Vidal, da UFPA. “A lição central é simples: não se constrói futuro sustentável ignorando a desigualdade.”

A história de Wickham, portanto, não é apenas sobre sementes contrabandeadas ou riqueza perdida — é uma chave para compreender a Amazônia de ontem e os desafios da Amazônia de hoje.

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