Dona Onete mudou a música do Pará e antes teve de se livrar de um casamento abusivo
Aos 86 anos, a “rainha do carimbó” transforma memórias de ribeirinha, sindicalista e professora em repertório que levou a música paraense ao mundo; trajetória inclui saída de um relacionamento de 25 anos e militância sindical.
Aos 86 anos, Ionete da Silveira Gama, conhecida artisticamente como Dona Onete, é hoje referência viva da cultura do Pará. Reconhecida como a “rainha do carimbó” e autora do termo “carimbó chamegado”, Onete alcançou projeção nacional e internacional já na terceira idade — mas a trajetória que a conduziu ao palco passa por lutas íntimas e coletivas: a construção de uma carreira tardia, a atuação como professora e sindicalista e a coragem de romper um casamento abusivo de 25 anos.
Nascida em 1939, em Cachoeira do Arari (Marajó), Onete perdeu o pai aos 4 anos e a mãe aos 9. Criada pela avó paterna, Quitéria, parteira que percorria o interior, ela cresceu entre saberes tradicionais — chás, unguentos e remédios naturais — que mais tarde levaria às suas aulas e às letras de suas canções. “O rio sempre foi minha escola”, diz ela em depoimento registrado na dissertação da neta, Josivana Castro Rodrigues, que documentou memórias e trajetórias da avó para obter o título de mestrado em 2023.
Da escola à resistência
A trajetória profissional de Onete começou na educação. Com formação que a fez retornar aos estudos depois da infância truncada, ela lecionou disciplinas como Geografia, História, Português e Matemática. Foi no ambiente escolar que se fortaleceu a militância: após se divorciar, ingressou no movimento sindical em busca de melhores condições para professores, participando de encontros que marcaram a fundação da CUT e outras bancadas de luta por direitos. Relata episódios de enfrentamento, como a mobilização contra um prefeito que atrasava salários — “a gente…prendemos o prefeito, batemos prego na porta”, lembra, com humor e firmeza.
O divórcio não foi um gesto isolado, mas a ruptura que permitiu a Onete construir autonomia. “Eu saí da vida dele”, conta. Recuperada financeiramente por meio do trabalho docente — “quando eu tinha 240 horas de aula de história, eu tinha o dinheiro para fazer as minhas coisas e mandei ele embora” —, ela transformou a própria história em força para ocupar outros espaços.
O encontro com a música — e a fama tardia
Onete sempre gostou de cantar, mas virou artista profissional apenas depois da aposentadoria. Com mais de 60 anos, formou um grupo de danças folclóricas e passou a se apresentar. O estímulo do segundo marido foi decisivo: “Vai, pra você não ficar aí, idosa, deitada em uma rede, doente”, lembrou ela em entrevista. Aos 73 anos lançou o primeiro disco, Feitiço Caboclo (2012), que captou a atenção de críticos estrangeiros e abriu portas para apresentações em países como Estados Unidos, Portugal, França e Reino Unido.
Seu repertório celebra símbolos e saberes paraenses — do uso do jambu em Jamburana (2013) a histórias do Ver-o-Peso em No meio do pitiú (2016). Músicas compostas por ela foram regravadas por nomes como Daniela Mercury, Gaby Amarantos e Fafá de Belém, e a imprensa estrangeira elogiou o vigor e a originalidade do trabalho. Apesar de convites internacionais, Onete tem reduzido viagens e shows por conta de problemas na coluna e do uso de cadeira de rodas; ainda assim, mantém o ritmo e a disposição: “Não me entrego para essa história de idade”, afirma, e surpreende ao preferir subir escadas sozinha a ser carregada — “ainda me sinto como se tivesse uns 70 anos”.
Estilo e identidade: o “carimbó chamegado”
Onete cunhou a expressão “carimbó chamegado” para definir uma variante do carimbó mais sensual e romântica, que preserva a percussão e os tambores, incorporando um trato afetivo típico da cultura paraense. “Chamego é aquele jeito gostoso de chegar, passar a mão na tua cabeça, te dar um cheirinho e ir embora”, explica. A linguagem carinhosa e o repertório que mistura mitos, ribeirania e memórias da infância consolidaram sua imagem como guardiã de saberes amazônicos.
Memória e família: o registro acadêmico
A vida de Onete também foi tema da dissertação de sua neta, Josivana Castro Rodrigues, que reuniu relatos sobre a infância entre ribeirinhos, o convívio com parteiras como a sogra Merandolina e as travessias pelas águas de Marajó e Igarapé-Miri — experiências que moldaram o imaginário da cantora. O trabalho acadêmico reforça o vínculo entre a trajetória pessoal de Onete e a preservação de saberes tradicionais, evidenciando o valor histórico e cultural de sua obra.
Reconhecimento e legado
Reconhecida como uma das principais vozes da música amazônica, Onete foi celebrada por colegas e artistas: Gaby Amarantos afirmou que ela “oxigena a cena da música paraense” e Fafá de Belém declarou que Onete “é o símbolo de todas as mulheres do Pará”. Suas canções circularam pelo Brasil e pelo exterior, e sua história — de professora, sindicalista e mulher que rompeu com um casamento abusivo — virou modelo de resistência e inspiração, sobretudo para mulheres e artistas da região.
Um conselho de vida
Ao olhar para a trajetória inteira, Onete não esconde os pesos do passado, mas também reconhece o valor das experiências: “Não teria ido me casar para o interior para passar o que eu já passei, mas também foi este interior que me deu o que eu sou agora… Eu sou dona da minha história. Eu caminhei pelo caminho errado, mas depois eu me achei no caminho certo.”



