A Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE-PA) passou a acompanhar denúncias sobre a precariedade nos serviços de assistência social prestados pela Fundação João XXIII (Funpapa) nos espaços de acolhimento de Belém, com atenção especial ao abrigo que abriga cerca de 100 indígenas da etnia Warao, refugiados da crise econômica na Venezuela. As alegações incluem falta de água potável, ausência de privacidade em banheiros, insalubridade, risco de contaminação, falta de acompanhamento de saúde, alimentação inadequada e redução do quadro de servidores.
O acompanhamento do caso pela DPE-PA teve início em agosto, a partir de denúncias encaminhadas pelo Sindicato dos Trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social (Sintsuas). Em inspeção ao local, o defensor público da Infância e Juventude de Belém, Carlos Eduardo Silva, descreveu o estado do abrigo como “caótico” e relatou constatações que motivaram o aprofundamento da atuação institucional — incluindo registro fotográfico e elaboração de dossiê pelo sindicato.
Condições estruturais e de higiene
Entre as irregularidades apontadas estão banheiros sem portas, vasos sanitários entupidos e ausência de privacidade; água não potável proveniente de um valão usado também para lavar pratos e roupas; e problemas de acondicionamento e qualidade das refeições fornecidas aos acolhidos. O defensor afirma que tais aspectos afetam diretamente o exercício de direitos básicos das crianças e demais moradores do abrigo.
Alimentação: contratos e redução de refeições
A alimentação dos indígenas é um dos pontos centrais das denúncias. Segundo relatos do Sintsuas e do defensor, até dezembro do ano anterior os Warao recebiam seis refeições diárias e também insumos para preparar alimentos próprios. A partir deste ano, no entanto, passaram a ser oferecidas apenas três refeições diárias, com baixa diversidade nutricional.
O contrato atualmente questionado foi assinado com a empresa Prospera, sem processo licitatório, no valor de R$ 4,2 milhões por seis meses. No termo contratual constavam itens como cuscuz, tapioca, ovo e queijo minas frescal, mas, conforme relatos de trabalhadores do abrigo, as entregas efetivas teriam se limitado a itens como café com leite, bolachas e uma laranja em algumas refeições. Após as denúncias, houve mudança no acondicionamento das refeições, segundo o diretor do Sintsuas, Rayme Sousa, mas a entidade afirma que a qualidade e a diversidade dos alimentos continuaram insuficientes.
Redução de quadro funcional e impactos nos serviços
O conflito entre os contratos e a operação do abrigo também se reflete no quadro de pessoal. No início do ano, o espaço contava com 24 servidores — entre psicólogos, pedagogos, educadores, médicos, enfermeiros, cadastradores e assistentes sociais — número que caiu para cerca de 10 funcionários atualmente. A diminuição do efetivo teria resultado na perda de serviços antes oferecidos no local, como atendimento odontológico, atendimento ambulatorial e cadastramento para obtenção de documentos civis e federais.
Trabalhadores do abrigo relataram surtos de tuberculose e doenças de pele entre as crianças durante o ano, problemas que, segundo o Sintsuas, demandariam acompanhamento clínico e medidas de saúde pública.
Procedimentos judiciais e atuação da Defensoria
A Defensoria Pública organiza acompanhamento técnico e jurídico do caso. Estava agendada uma audiência de conciliação na Justiça para o dia 1º de dezembro para tratar das condições do abrigo, mas o município informou que não pôde comparecer por não ter sido notificado em tempo. Em razão disso, uma nova audiência foi remarcada apenas para janeiro de 2026.
Diante da urgência das denúncias e da ausência de solução imediata, o defensor público da Infância e Adolescência afirmou que pretende buscar uma liminar obrigando a Funpapa a promover ações urgentes de melhoria nas condições do abrigo.
Denúncias formais e dossiê
O Sintsuas elaborou um dossiê contendo fotos e relatos sobre o estado do abrigo e a qualidade da alimentação, material que foi apresentado à Defensoria e que subsidia a atuação jurídica e técnica do órgão. O diretor do sindicato, Rayme Sousa, também descreveu mudanças pontuais no fornecimento após as denúncias, mas afirmou que o padrão das refeições e o respeito às especificidades alimentares e culturais dos indígenas permanecem insatisfatórios.
Posicionamentos e providências do poder público
A reportagem solicitou manifestação da Prefeitura de Belém e da Funpapa sobre as denúncias e as condições do abrigo. Até o fechamento desta edição, não houve resposta oficial às solicitações de informação.
Em postagem nas redes sociais, o prefeito de Belém, Igor Normando, informou ter determinado mudanças na administração da Funpapa e a suspensão do contrato com a empresa fornecedora de alimentação, afirmando que foi iniciado o processo de contratação de nova empresa e que os contratos estariam sendo revisados e auditados. Na declaração divulgada, o prefeito disse: “Assim que tomamos conhecimento dos problemas no fornecimento de alimentação do abrigo indígena Warao, em Belém, determinamos imediatamente a notificação da empresa para regularizar o serviço, conforme o contrato. Já iniciamos também o processo de contratação de uma nova empresa. … Estamos revisando e auditando os contratos, assim como revendo a melhor forma de atuação do órgão, para cumprir, com eficiência, seu papel de apoio à assistência em Belém.”
Impactos sobre direitos e assistência especializada
Representantes do Sintsuas e o defensor público destacam que a redução de serviços e o corte de profissionais compromete o atendimento integrado ofertado anteriormente, incluindo ações de saúde, acompanhamento psicossocial, educação e processos de inclusão como o cadastramento junto à Receita Federal e à Polícia Federal, serviços considerados fundamentais para a regularização documental e o acesso a direitos dos refugiados.
Segundo relatos colhidos pelo sindicato e pela Defensoria, o trabalho anterior possibilitava o encaminhamento de algumas famílias para emprego e aquisição de moradia; a interrupção ou fragilização desse trabalho, afirmam, teria estagnado avanços conseguidos no período anterior.
Situação atual: a Defensoria Pública mantém acompanhamento do caso, o Sintsuas apresenta dossiê e denúncias formais; a Prefeitura e a Funpapa foram questionadas pela reportagem sem resposta até a publicação; o Executivo informou publicamente mudanças na gestão da Funpapa e a suspensão do contrato com a empresa responsável pela alimentação, além do início de processo para contratação de nova fornecedora. A próxima audiência de conciliação ficou prevista para janeiro de 2026, enquanto a Defensoria trabalha para obter medidas judiciais de urgência.



